quarta-feira, 18 de abril de 2012

Viviam um para o outro. Viviam um do outro. Sabiam-se iguais. Por saberem-se assim, nada mais importava. Tinham a anuência um do outro, tinham a cumplicidade. Olhavam sempre para o mesmo lado, desejavam os mesmos desejos, dormiam juntos os mesmos sonhos -- que eram sempre apenas sonhos, porque se bastavam um ao outro. Deleitavam-se com os mesmos gostos, sussurravam as mesmas juras, cantarolavam as mesmas músicas. Embriagavam-se um da imagem do outro. Um dia, numa brincadeira mais animada, tropeçaram um no outro. E caíram, um sobre o outro. O som da queda foi mais que isso. Os estilhaços, o sangue, a dor. Procurou seu amor, mas eram só cacos pelo chão. Jogou-se sobre os cacos, rasgou-se, sangrou-se, doeu-se. Gritou pelo seu par e chorou, chorou até não ter mais som, até não ter mais nada. E então, no limite do cansaço e do silêncio, abriu os olhos para além de seus próprios olhos. Levantou-se do meio dos cacos sem dor, e com o sangue já seco sobre si e sobre tudo. Respirou fundo, sentindo o ar só seu entrando pelo corpo que era só seu. E sentiu-se. Pela primeira vez, sentiu-se em vez de ver-se. E entendeu: estava livre de si mesmo. (Inspirado na obra de Salvador Dalí "Metamorfose de Narciso".)

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